Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová: Entre a Fé e o Direito à Vida

A liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Cada indivíduo tem o direito de escolher sua fé, e até mesmo tomar decisões médicas orientadas por suas convicções religiosas. No entanto, quando a recusa ao tratamento médico coloca em risco a vida do paciente, o tema ganha contornos complexos.

Priscila Tostes

9/2/20253 min read

A liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal brasileira. Cada indivíduo tem o direito de escolher sua fé, praticá-la e até mesmo tomar decisões médicas orientadas por suas convicções espirituais. Um dos exemplos mais emblemáticos desse exercício de liberdade é a recusa de transfusão de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, que veem esse procedimento como contrário aos ensinamentos bíblicos.

No entanto, quando a recusa ao tratamento médico coloca em risco a vida do paciente, o tema ganha contornos complexos. É justamente nesse ponto que o direito precisa equilibrar a autonomia da vontade com a proteção do bem maior: a vida.

Autonomia da vontade e liberdade religiosa

Do ponto de vista jurídico, a recusa à transfusão de sangue encontra fundamento no princípio da autonomia da vontade e no direito à liberdade religiosa. O paciente adulto, consciente e capaz, pode recusar determinado tratamento médico, ainda que isso aumente o risco de morte.

O Código Civil, em seu artigo 15, prevê que ninguém pode ser constrangido a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica quando há risco de vida. Isso significa que, em regra, a decisão do paciente deve ser respeitada, mesmo que vá contra a orientação médica.

O dever de proteção da vida e o posicionamento do STF

Se, por um lado, a autonomia individual deve ser preservada, por outro, o Estado também tem o dever de proteger a vida como direito indisponível. Essa tensão chega com frequência ao Judiciário, em pedidos de autorização para realização de transfusão em pacientes que recusaram o procedimento.

Diante das recorrentes discussões que envolvem a colisão entre a liberdade religiosa e o dever de preservação da vida, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou entendimento relevante sobre o tema. Para pacientes adultos, conscientes e capazes, o Tribunal tem entendido que deve prevalecer a liberdade religiosa e a autonomia da vontade, ainda que a recusa possa resultar na morte. Nesse contexto, a intervenção forçada configuraria violação à dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, quando se trata de crianças ou adolescentes, o STF adota posição diferente, pois a recusa não é feita pelo próprio paciente, mas por seus pais ou responsáveis, em nome da fé que professam.

Aqui, o direito à vida e à saúde é considerado prioritário, aplicando-se o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA estabelece que o direito à vida e à saúde deve prevalecer sobre qualquer outra consideração, inclusive a vontade dos pais.

Assim, quando os responsáveis se opõem a uma transfusão necessária para salvar a vida do filho, é comum que médicos recorram ao Judiciário, que, em regra, autoriza o procedimento. Nesses casos, o melhor interesse da criança prevalece sobre a liberdade religiosa dos pais, garantindo sua sobrevivência e integridade física.

O papel do médico e a responsabilidade ética

O médico, diante da recusa expressa de um paciente adulto capaz, enfrenta um dilema ético: deve respeitar a vontade do paciente ou agir de acordo com o princípio da beneficência, que orienta salvar vidas?

Do ponto de vista deontológico, o Código de Ética Médica prevê que o profissional deve respeitar a vontade do paciente, desde que este esteja plenamente informado e seja capaz de decidir. Contudo, em situações de urgência, em que não há tempo hábil para decisão judicial, o médico pode ser responsabilizado se deixar de agir e o paciente vier a óbito.

Quando se trata de criança, a conduta deve ser clara: o médico deve adotar todas as medidas necessárias para preservar a vida, inclusive recorrer ao Judiciário se houver oposição dos pais.

Entre a fé e a ciência: caminhos de conciliação

Apesar do impasse jurídico e ético, é importante destacar que a medicina tem avançado em alternativas às transfusões tradicionais. Técnicas como hemodiluição, recuperadores intraoperatórios de sangue e o uso de expansores plasmáticos são algumas das opções já disponíveis e aceitas por pacientes que recusam transfusões.

Essas alternativas, quando possíveis, permitem conciliar a liberdade religiosa com a preservação da vida, reduzindo o conflito entre médicos, pacientes e instituições.

Conclusão

A recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová é um dos temas mais desafiadores para o Direito, por envolver a colisão de dois direitos fundamentais: a liberdade religiosa e o direito à vida.

No caso de adultos plenamente capazes, a autonomia deve ser respeitada, ainda que isso implique risco de morte. Já quando envolve crianças e adolescentes, prevalece o princípio da proteção integral, autorizando o Estado a intervir em prol da vida.

O debate revela que, embora a fé seja um guia importante para as decisões individuais, o Direito não pode se afastar de seu compromisso maior que é garantir a sobrevivência e a dignidade da pessoa humana.